PROTESTO MS

Em busca do elo oculto entre devedor e seu patrimônio na blindagem patrimonial

Um dos maiores desafios no enfrentamento da blindagem patrimonial nas execuções judiciais consiste em, ao longo da investigação, identificar e demonstrar em juízo a existência do elo oculto que conecta o devedor ao seu patrimônio, frequentemente alocado em nome de pessoas interpostas ou através de estruturas societárias fraudulentas.

Em nossa obra, pontuamos que “através da blindagem patrimonial é criado um envoltório protetivo em torno de bens, direitos e valores do devedor, de modo a inviabilizar a respectiva identificação e consequente constrição judicial, visando esvaziar a responsabilidade patrimonial do executado, frustrando, assim, a justa satisfação do crédito exequendo. “A característica clássica da blindagem patrimonial é a atribuição da titularidade formal da propriedade a interpostas pessoas, fazendo com que desapareça o liame entre o devedor e o seu patrimônio.” 

Para superar a dificuldade probatória das fraudes patrimoniais perpetradas pelo devedor profissional, consideramos o contrato de mandato nas relações negociais do investigado como uma das provas mais impactantes e robustas para desconstruir a blindagem patrimonial, haja vista que se permite trazer à tona os mecanismos sub-reptícios de controle patrimonial do devedor, contribuindo significativamente para a identificação e recuperação de bens ocultados.

O contrato de mandato, previsto nos artigos 653 a 656 e 661 do CC, é um negócio jurídico por meio do qual uma pessoa (mandatária) recebe de outrem (mandante) poderes para, em seu nome, representá-la, ou ainda com vistas à prática de administração de bens e interesses e, por fim, para a realização de atos jurídicos em geral.

O mandato assume contornos de negócio jurídico fraudulento, no âmbito da blindagem patrimonial, quando utilizado como instrumento de controle oculto, indireto ou clandestino de bens em nome de terceiro, ou para gestão de negócios [2] pelo real dono da empresa, ocultando-se através de “laranjas” ou “testa de ferro” (sócios formais) à frente do negócio. Ele atua como meio de controle invisível do devedor sobre seus bens ocultados, sendo frequentemente associado a outros negócios jurídicos escusos. Para melhor compreensão da dinâmica do mandato nas fraudes patrimoniais, elencamos os seguintes exemplos:

(a) Alienações onerosas simuladas: O devedor supostamente vende um bem, porém mantém a administração do bem alienado por meio do contrato de mandato. Com isso, o fraudador continua exercendo o controle sobre o bem alienado, apesar da transferência formal de propriedade;

(b) Constituição de pessoas jurídicas em nome de terceiros: O devedor constitui pessoas jurídicas em nome de terceiros, exercendo a gestão empresarial e patrimonial através do mandato, na qualidade de sócio oculto, visando mascarar a verdadeira titularidade e controle da estrutura societária, dificultando a identificação de vínculos patrimoniais;

(c) Saída fraudulenta do sócio retirante: Um sócio retira-se formalmente do quadro societário da empresa, mas continua a comandá-la através do mandato. Essa fraude societária permite que o sócio retirante mantenha o controle sobre a empresa sem estar formalmente vinculado a ela;

(d) Abertura e movimentação de contas em nome de terceiros: O devedor utiliza procurações para abrir e movimentar contas bancárias em nome de terceiros, especialmente de familiares. Essa prática visa dificultar a rastreabilidade dos ativos financeiros do devedor, especialmente por meio da ferramenta eletrônica Sisbajud.

O contrato de mandato pode ser localizado por meio de simples acesso pelo juízo à ferramenta eletrônica Censec, na consulta ao módulo Central de Escrituras e Procurações (CEP). Cabe destacar que “a consulta de escrituras e procurações (módulo CEP) é de acesso restrito às autoridades previamente cadastradas no sistema, conforme artigos 10 e 19 do Provimento 18/2012 do CNJ, e constitui a base de dados mais poderosa e eficiente na quebra de blindagem patrimonial”.

Da mesma forma, é possível identificar a existência de procuração para movimentação bancária por meio da ferramenta eletrônica CCS, até porque é possível a utilização de instrumento particular de mandato para movimentação bancária.

A partir da nossa experiência profissional, temos percebido um alto grau de êxito em diversos graus de jurisdição na quebra de blindagem patrimonial lastreada na existência de contrato de mandato, conforme se verifica dos exemplos práticos apresentados a seguir, adaptados de situações reais, em que a apresentação de contratos de mandato tem sido determinante para desvelar o verdadeiro controle patrimonial exercido pelo devedor.

Exemplo 1: alienações sucessivas de imóveis para holdings patrimoniais com gestão patrimonial oculta do devedor

Este estudo de caso foi extraído de uma situação concreta de ocultação patrimonial realizada pelo devedor através de uma complexa cadeia de transferências de bens imóveis. A blindagem patrimonial envolveu duas holdings patrimoniais constituídas em nome de familiares e incluiu sucessivas compras e vendas simuladas, sem lastro financeiro algum, além da celebração de contratos de mandato entre as holdings e o devedor, que permitiram a este manter o controle oculto de seu acervo imobiliário, agora formalmente registrado em nome de pessoa jurídica de titularidade de um familiar. A seguir, apresentamos alguns trechos relevantes do julgamento:

“[…] conforme consulta à ferramenta eletrônica Censec, verifica-se que a… Agronegócios Eireli, no ano de 2019… firmou dois contratos de mandato de gestão empresarial e patrimonial da referida holding, por instrumento público de procuração…, assinados por sua sócia formal Delourdes… (irmã do sócio devedor), nomeando como seus procuradores sócio devedor e Vinícius… (filho do sócio devedor e sobrinho de Delourdes…), conferindo-lhes amplos poderes de administração empresarial, de gestão financeira e patrimonial, e de representação perante as repartições públicas […].

O controle patrimonial do executado sócio devedor sobre a holding, ora embargante, também é revelado pelo fato de que o imóvel localizado na Estrada dos Índios … objeto das sucessivas transferências patrimoniais para as holdings … Agricultura Comércio E Producao …  e … Agronegócios Eireli, consta até os dias atuais como seus domicílios fiscal (Infoseg …), eleitoral (Siel…) e bancário (extrato de endereços do Sisbajud). […].

Não bastasse isso, o referido imóvel em que os executados … residem até os dias atuais é mais um exemplo da cadeia sucessiva de transferência patrimonial fraudulenta, consoante informações extraídas do módulo fiscal DOI – Declarações sobre Operações Imobiliárias.

Veja-se que, a partir dos dados reproduzidos a seguir, é fácil perceber a cadeia sucessiva de transferência do imóvel particular dos referidos sócios para as holdings patrimoniais, tudo com vistas à ocultação do acervo de bens submetidos à Jurisdição Executiva: […]

Demais disso, conforme atos notariais obtidos através de consulta ao sistema Censec […], o executado J.V. constituiu como seu procurador para administração dos imóveis rurais o sr. Alcides …, o qual, por sua vez, é apontado nas procurações em questão como sendo administrador da holding patrimonial … Agronegocios Eireli, na qual foi ocultado todo o acervo patrimonial da família V. […].

Pelo quadrante fático delineado, é bem de ver que as empresas … Comércio e Producao de Peixes Eireli e … Agronegócios Eireli figuram como meras holdings patrimoniais da família V., cujo gestor patrimonial, de fato, é o patriarca da família, o executado J.V. conforme procurações públicas e bancárias, além das declarações de imposto de renda, tendo sido criadas e utilizadas apenas para blindar os bens dos executados contra futuros credores cíveis (processo falimentar) e trabalhistas. […]”.

Exemplo 2: desconsideração da personalidade jurídica expansiva inversa amparada na existência de um contrato de mandato fraudulento

O presente exemplo refere-se a um caso real de desconsideração da personalidade jurídica expansiva inversa amparada na existência de um contrato de mandato para fins de blindagem patrimonial.

No caso concreto, o sócio executado constituiu nova pessoa jurídica em nome de familiares, atuando como sócio oculto por meio de um contrato de mandato, para fins de blindagem patrimonial, estabelecendo uma cadeia de procurações públicas outorgadas pelos sócios formais dessa nova empresa, que acabou sendo corresponsabilizada na execução trabalhista.

A seguir, apresentamos alguns trechos relevantes do julgamento:

“[…] A empresa A. A. A. L., ora demandada, foi constituída em 17/03/1997, na mesma área de atuação da executada, isto é, na construção civil, quando se aglomeravam nesta Justiça especializada as ações e execuções trabalhistas em desfavor da executada G T F …, não por mera coincidência.

Iniciava-se uma outra pessoa jurídica, livre de dívidas, sejam trabalhistas ou fiscais, para exercer as mesmas atividades da empresa anterior, que estava em processo de falência, acumulando dívidas de toda natureza.

Compõem o quadro societário da empresa ora demandada Cristina…, Daniel… e Carolina…, esposa e filhos, respectivamente, do executado Francisco […].

[…]  Retomadas as pesquisas patrimoniais no ano de 2019, revelou-se uma verdadeira engenharia de ocultação e blindagem patrimonial, onde foram encontradas empresas sólidas controladas pelo executado Francisco…, culminando com a instauração do presente IDPJ, a fim de se incluir a empresa ora demandada no polo passivo.

Restou configurado o abuso da personalidade jurídica, utilizando-se o sócio executado, ora de pessoas interpostas, costumeiramente chamadas de “Laranjas”, para ocultar e blindar o seu patrimônio, ora de outras empresas, para dar continuidade à atividade empresarial da já tão comprometida.

Francisco…, sócio oculto da empresa demandada, possui poderes específicos outorgados por procuração pública para atos de gestão, bem como para a movimentação financeira, tanto da empresa, como dos seus três sócios, esposa e filhos, todas lavradas no Cartório do 8º Ofício de Notas e Protesto de títulos da cidade de Fortaleza/CE.

[….]

O sócio da executada principal Francisco … deu continuidade às atividades desenvolvidas pela falida GTF, por meio da empresa A. A. A. L., utilizando-se dos entes familiares, exercendo de fato todo o controle empresarial, administrativo e financeiro da empresa mediante procurações públicas.

[…] a agravante acabou, como demonstrado nas investigações, sendo utilizada como um meio de fuga de responsabilização dos executados e como meio de ocultação e blindagem do patrimônio que deveria ter sido direcionado ao pagamento do débito exequendo. E o elo é sempre o mesmo Francisco … que atua de forma escondida na sociedade, manejando amplos poderes conferidos em mandato. […]”.

A partir dos exemplos e estudos de casos práticos apresentados, percebemos que o contrato de mandato constitui elemento probatório revelador da blindagem patrimonial. Sua força probatória reside justamente em sua capacidade de demonstrar que o devedor/mandatário atua às sombras do terceiro/mandante. Assim, embora as operações negociais tenham sida realizadas formalmente por terceiros, são, na realidade, conduzidas sob as ordens e para o benefício do devedor fraudador, em evidente ajuste simulatório (artigo 167 do CC).

Sabemos que existem vários elementos de prova capazes de desmascarar a blindagem patrimonial, desde aqueles obtidos pelo sistema extrajudicial de busca patrimonial (fontes abertas de pesquisa) até os extraídos a partir da quebra do sigilo financeiro do investigado por meio de pesquisa patrimonial avançada, utilizando ferramentas eletrônicas de acesso restrito, tais como Simba e Sisbajud (módulo de afastamento de sigilo bancário).

Dentro desse vasto acervo probatório à disposição do Estado-juiz e também do credor, e com enfoque na praticidade e simplicidade na obtenção desta prova, é inegável que o contrato de mandato constitui prova documental robusta, com imensurável efeito persuasivo na formação do convencimento do juízo acerca do simulacro dos negócios jurídicos praticados pelo fraudador visando blindar seu patrimônio. A formalização deste tipo de contrato pode evidenciar que o devedor mantém o controle efetivo sobre os bens em nome de terceiros, desmascarando assim estratégias fraudulentas de proteção patrimonial.

Em suma, o contrato de mandato é uma das peças fundamentais na montagem do mosaico da fraude, sendo capaz de revelar o elo oculto de controle patrimonial do executado.

Fonte: Conjur


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