A venda direta na falência
Sob perspectiva processual, a falência é processo de execução em concurso contra devedor empresário insolvente. Sendo execução, não é difícil inferir que a alienação dos bens do falido ocupa papel de destaque no procedimento.
A alienação extraordinária de ativos ou venda direta [1] — expressão cunhada pela praxe forense, que seria aquela realizada sem procedimento licitatório, — acaba surgindo como opção tentadora, especialmente por conta da simplicidade procedimental e da rapidez que ela traz consigo. A questão que se coloca é: quando seria ela validamente viável?
Em síntese, a Lei 11.101/2005 detalha os mecanismos de alienação de ativos por meio das formas (da mais ampla possível à mais individualizada — com a alienação de cada bem individualmente considerado) e das modalidades (leilão, processo competitivo ou outra aprovada nos termos da lei) previstas, respectivamente, nos artigos 140 [2] e 142 [3].
Com a vigência da Lei 14.112/2020, passou-se a exigir que o administrador judicial leve aos autos o plano de realização de ativos, que, em breve síntese, é um roteiro de como ele pretende realizar a alienação dos bens arrecadados.
O plano, além de proporcionar maior controle e debate em torno das ferramentas de alienação dos ativos, aumentando também a transparência e a previsibilidade, igualmente se revela como um elemento que visa a garantir eficiência, na medida em que nele deve-se prever prazo máximo de 180 dias, contados do auto de arrecadação, para a venda dos bens. Ainda sob o prisma da eficiência, a estratégia prevista no plano deverá contemplar aquela que apresente melhor custo-benefício à comunidade falimentar como um todo, conciliando-se os custos e os riscos envolvidos com o tempo dispendido para tanto.
A propósito, a necessidade de maximização dos resultados, que deve ser o norte a ser perseguido pelo plano de realização dos ativos, encontra-se positivada na Lei 11.101/2005, que prevê em seu artigo 75 que “a falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a: I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia”. É uma tarefa hercúlea garantir os interesses dos credores, do mercado e da sociedade como um todo!
De acordo com o já citado artigo 142 da Lei 11.101/2005, a alienação dos bens na falência — que conforme o artigo 139 [4] deve se realizar logo após a arrecadação — se dará por leilão, por processo competitivo organizado por agente especializado, ou por qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos da Lei 11.101/2005.
Alienação de bens do falido
Como se vê, a margem para a alienação de bens do falido fora do ambiente concorrencial é baixa. A exceção ao regime concorrencial, talvez, seja a alienação antecipada de bens perecíveis, deterioráveis, sujeitos a considerável desvalorização ou que sejam de conservação arriscada ou dispendiosa, nos termos do artigo 113 da Lei 11.101/2005 [5].
Portanto, a regra é que a alienação dos bens na falência se dê em um ambiente concorrencial. Fábio Ulhoa Coelho [6] chama isso de “venda ordinária na falência”, escrevendo: “A venda ordinária na falência se caracteriza pela existência de competição entre os pretendentes à aquisição. Trata-se de característica que visa assegurar a venda pelo maior preço, entre os agentes interessados em adquirir os bens da massa. A competição impessoaliza a alienação, ao permitir que qualquer um com interesse no objeto oferecido à venda possa disputá-lo e, caso se disponha a pagar o preço mais elevado, adquiri-lo. A impessoalidade na alienação presumivelmente gera mais recursos na alienação do ativo do falido, em proveito da comunhão dos credores”.
Não se desconhece o teor do artigo 144 [7], que prevê a possibilidade de ser autorizada modalidade diversa de alienação, tampouco dos artigos 111 [8] e 145 [9], todos da Lei 11.101, que dispõem sobre a adjudicação de bens por credores. Contudo, em nenhum dos três dispositivos, embora haja mitigação da possibilidade de concorrência, há autorização para a realização de venda direta em qualquer situação. Ao contrário, a necessidade de estabelecimento de concorrência deve ser a regra nos feitos falimentares.
Como destacado por Marcelo Sacramone [10], ao comentar o artigo 142 da Lei 11.101/2005, independentemente do mecanismo eleito, a busca por competitividade deve ser uma constante nos processos falimentares:
“Pela nova redação do dispositivo legal, independentemente da modalidade adotada, poderá ser realizado como alienação judicial qualquer processo competitivo e público de venda, que garanta o acesso a todos os interessados. Dentro dessas modalidades alternativas, há o processo competitivo organizado por agente especializado e de reputação ilibada. Poderá ocorrer qualquer outra modalidade também de venda, desde que se garantam a transparência e a concorrência entre os interessados.”
O artigo 144, por exemplo, permite que, “havendo motivos justificados”, seja autorizada judicialmente a alienação de bem por modalidade diferente das previstas no artigo 142. Isso não coloca a venda direta como a primeira opção, embora também não a vede. Tudo vai depender da situação concreta.
Pode ser que existam ativos tão únicos e singulares, voltados para um universo tão limitado de interessados, que a competição se mostre inviável. Uma máquina, por exemplo, que de tão única somente possa ser utilizada por uma ou duas plantas industriais do país. Se uma dessas plantas for a do falido, no final das contas, sobra apenas um sujeito que pode estar potencialmente interessado.
Vão existir situações, portanto, em que não apenas os bens perecíveis, deterioráveis, sujeitos à considerável desvalorização ou que sejam de conservação arriscada ou dispendiosa devam ser alienados fora do ambiente concorrencial, mas aqueles cuja chance de se estabelecer a concorrência é tão diminuta que uma proposta de aquisição direta do bem passa a ser algo que deva ser considerado pelo juízo falimentar.
No entanto, o que parece adequado, na dúvida sobre a possibilidade ou não de o bem ser alienado dentro de um processo competitivo, é que isso ao menos seja testado. Ou seja, a não ser que esteja patente a impossibilidade de se estabelecer competição entre eventuais interessados, pelo menos se oportunize a competição. Afinal, como tentar atrair a aplicação do artigo 144 — e dizer que há motivos justificados para ser realizada a alienação por modalidade diversa da concorrencial —, se nem ao menos buscou-se a alienação por tal meio? A não ser, é claro, como já se disse, que se esteja diante das situações previstas no artigo 113 ou de outra em que fique absolutamente demonstrada a inaptidão para alienação por meio competitivo.
Competição não é obrigatoriamente leilão
E é importante que fique claro que, quando se defende a necessidade de competição, não se está a falar, necessariamente, na ocorrência do leilão. Esse, embora possa ser a mais clássica e tradicional modalidade de alienação por meio de processo competitivo, evidentemente, não é a única.
Assim, quando se diz que a venda direta tem lugar em diminutas situações fora das previstas no artigo 113 da Lei 11.101/2005, não se está a afirmar que o leilão é regra absoluta. Ao contrário, não há nada no artigo 142 da Lei 11.101/2005 que suponha uma hierarquia entre as referidas modalidades de alienação de ativos (leilão, processo competitivo ou outra forma aprovada nos termos da lei). Ademais, é preciso que o artigo 142 seja lido em conjunto com o artigo 75.
Com isso voltamos àquilo que havia sido dito anteriormente: o plano de alienação de ativos terá que trabalhar com as formas e modalidades de alienação dos ativos de modo a obter o máximo de recursos financeiros com o menor risco, tempo e dispêndio possíveis.
Da mesma maneira que o administrador judicial não deve ser seduzido pela comodidade da venda direta, não deve ficar preso à tradição do leilão. Se a escolha, eventualmente, recair sobre ele, deve ser porque, para o caso, o leilão se mostre como a modalidade mais eficaz para a alienação dos bens em questão — e, de fato, talvez caia melhor em muitos casos.
Contudo, não se pode esquecer que há muitas formas de se alienar um bem na falência, com nível ótimo de competição, sem que, necessariamente, se estabeleça a clássica modalidade de leilão. Aliás, uma eventual proposta de aquisição direta pode, inclusive, servir de piso para o estabelecimento, em torno dela, de um certame, conforme destacado por Fernanda Alves de Oliveira, no ótimo texto ‘Stalking horse’ garante preço mínimo para ativos na falência ou recuperação.
Segundo a autora “há na lei brasileira uma margem de liberdade para a realização de ativos, desde que com motivos justificados e que passe pela vigilância do magistrado, Ministério Público e do administrador judicial, o que levou a uma abertura de possibilidades e ao uso de mecanismos mais modernos e mais eficientes do ponto de vista de monetização do patrimônio das empresas em situação falimentar ou em recuperação judicial, como forma de não apenas diminuir o tempo dos processos dessa natureza, mas, consequentemente, tornar mais célere aos credores o recebimento de seus créditos”.
Vale lembrar que, segundo o § 2º, do artigo 75, da Lei 11.101/2005, já citado acima, “a falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia”. Ou seja, o administrador judicial não apenas está autorizado a buscar formas distintas do leilão (quando necessário), mas tem o dever de fazer isso quando se mostrar mais eficiente, afinal dentre os valores que devam ser conciliados no processo falimentar estão os interesses dos credores, mas também os interesses de mercado e da sociedade como um todo, na medida em que a rápida realocação dos ativos também é uma forma de garantir o desenvolvimento nacional, que, ao fim e ao cabo, é um dos objetivos fundamentais da República, nos termos do artigo 3º, II, da Constituição.
A venda direta não deve ser a regra nos processos falimentares, a não ser dentro das hipóteses previstas pelo artigo 113 da Lei 11.101/2005. Isso não significa, todavia, que os atores processuais da falência, especialmente o administrador judicial a quem compete elaborar o plano de alienação dos ativos, deva ficar adstrito ao clássico modelo de leilão. São muitas as possibilidades que, mesmo sem deixar de lado a competitividade na aquisição do bem, podem conduzir a um resultado ótimo, em termos de custo-benefício, tanto à massa falida quanto aos interessados em geral.
Fonte: Conjur
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