Artigo: Pacto de coparentalidade: Uma análise sob a ótica das consequências de seu inadimplemento – por Daniela Braga Paiano, Arthur Lustosa Strozzi e Isabela Nabas Schiavon
Uma família coparental é aquela em que dois ou mais indivíduos, sem estarem em uma relação conjugal ou união estável, decidem ter filhos de forma voluntária, exercendo sua autodeterminação e sem que haja qualquer implicação jurídico-patrimonial entre os genitores. Para Conrado Paulino da Rosa, a coparentalidade ou as famílias coparentais são aquelas que “se constituem entre pessoas que não necessariamente estabeleceram uma conjugalidade, ou nem mesmo uma relação sexual. Apenas se encontram movidos pelo interesse e desejo em fazer uma parceria de paternidade/maternidade”1.
Essa relação entre os pais coparentais é regida pelo pacto de coparentalidade2, que pode ser compreendido como um negócio jurídico atípico celebrado entre duas pessoas capazes, com o propósito de estabelecer cláusulas tanto patrimoniais quanto existenciais para a geração, criação, manutenção e desenvolvimento de um filho, independentemente da presença de um vínculo afetivo entre os genitores.
Durante a IX Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), entre os dias 19 e 22 de maio de 2022, foi proposto o seguinte enunciado: “é admissível o acordo de coparentalidade, fundando no direito ao planejamento familiar, em consonância com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”, sendo rejeitado sob o argumento de que o mencionado pacto (i) seria eivado de nulidade, pois seria utilizado para tentar descaracterizar os efeitos tanto patrimoniais (sejam eles inter vivos ou sucessórios) quanto extrapatrimoniais (como o dever de alimento) da união estável; e (ii) não poderia dispor de elementos que são intrinsecamente indisponíveis, intangíveis e personalíssimos, quais sejam, os direitos e deverem inalienáveis da filiação e o direito de personalidade do filho3.
Ocorre que a subordinação imposta por previsões normativas impede que situações complexas como essas, não abarcadas diretamente pelo ordenamento jurídico, recebam a tutela adequada. Nesse contexto, surge a noção de situações jurídicas, a qual reformula o conceito tradicional de direitos subjetivos na medida em que reconhece a necessidade de uma estrutura conceitual mais ampla para lidar com as interações sociais contemporâneas.
De acordo com Perlingieri, a elaboração das situações jurídicas subjetivas está profundamente conectada com o propósito de conferir uma estrutura conceitual a comportamentos e interesses, ou seja, de inserir aspectos da realidade social no âmbito jurídico, razão pela qual assumem relevância para o direito, já que se originam da análise de fatos e da realidade concreta4.
Dentro do contexto familiar, diversas formas de expressão são reconhecidas, incorporando a autonomia privada nas decisões relacionadas à família. Assim, a intervenção do Estado se justificada apenas para garantir espaços e liberdades, permitindo que cada pessoa busque sua realização de acordo com suas necessidades e dignidade, dentro do contexto do seu projeto de vida5.
Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira6 apontam que, no contexto do Estado Democrático de Direito, as decisões sobre as escolhas existenciais têm adquirido crescente importância, à medida que a pessoa humana assume um papel central no sistema jurídico. A constitucionalização e a individualização do direito civil destacaram a relevância das decisões judiciais, uma vez que todas as situações jurídicas devem ser orientadas para a funcionalização da realização plena da pessoa humana.
Dentro desse contexto se encaixa o pacto de coparentalidade, impregnado de interesses existenciais, podendo ser compreendido também como um negócio jurídico existencial, no qual a relação jurídica é primariamente composta por situações jurídicas existenciais carentes de proteção, e cujo foco de interesse requer resguardo.
Os pactos de coparentalidade podem e devem abranger cláusulas sobre uma variedade de questões importantes, desde o método de concepção dos filhos até a divisão dos custos com os procedimentos médicos relacionados à gravidez e eventual fertilização, os gastos relacionados ao parto e as despesas de saúde do bebê, como também assuntos como religião, puericultura, alimentação e nutrição da criança.
Além disso, podem abranger aspectos como educação, atividades extracurriculares, uso de tecnologia (internet, tempo de tela), o estabelecimento do modelo de guarda compartilhada, diretrizes para a tomada de decisões tanto espontâneas quanto emergenciais, e estabelecimento de pensão alimentícia. Defende-se a desnecessidade de homologação pelo Poder Judiciário em todas as questões, acreditando-se na tendência da desjudicialização7.
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, ao estruturar os elementos essenciais, naturais e acidentais do negócio jurídico, teorizou a denominada “Escada Ponteana”. A partir dela, o negócio jurídico pode ser compreendido em três planos: (i) plano da existência; (ii) plano da validade; e (iii) plano da eficácia. No plano da validade, os elementos essenciais ganham corpo, ou seja, deixam de ser meros substantivos e passam a receber adjetivações: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.
No pacto de coparentalidade, o que se exige para que seja considerado válido é que os celebrantes sejam civilmente capazes, que o objeto seja a geração de filhos – objeto lícito, uma vez que se autoriza a reprodução assistida), destacando-se que não há forma especial a ser observada, tratando-se de um negócio atípico. No plano da eficácia, a coparentalidade fica amplamente condicionada à inexistência da união estável. Isso porque, caso haja relação de união estável, portanto, um ato-fato jurídico, a assinatura de pacto de coparentalidade com o propósito de fraudar a lei seria considerada inválida, resultando em nulidade (artigo 166, inciso VI do Código Civil).
Isso posto, indaga-se quais seriam as consequências jurídicas em caso de descumprimento da celebração do pacto de coparentalidade?
Para tanto, passe-se a analisar a relação jurídica obrigacional. A obrigação nasce para ser extinta, seja com o adimplemento, seja com o inadimplemento. Flávio Tartuce conceitua obrigação como:
A relação jurídica transitória, existente entre um sujeito ativo, denominado credor, e outro sujeito passivo, o devedor; e cujo objetivo consiste em uma prestação situada no âmbito dos direitos pessoais, positiva ou negativa. Havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor8.
No pacto de coparentalidade, há uma relação jurídica obrigacional complexa, pois as partes são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras entre si, ou seja, há um sinalagma. A quebra do sinalagma é tida como geradora da onerosidade excessiva, do desequilíbrio negocial, como um efeito gangorra.
A principal consequência do inadimplemento é consagrada pelo princípio da responsabilidade patrimonial do devedor, prevendo-se que todos9 os bens do devedor respondem em caso de descumprimento da obrigação, conforme o artigo 391 do Código Civil.
No entanto, nos casos que envolvem o pacto de coparentalidade, a desistência por parte de um dos celebrantes não poderá impactar no cumprimento forçado da obrigação, tendo em vista a sensibilidade do tema e o objeto pactuado. Por esse motivo, deverá ser aplicada a regra do inadimplemento absoluto, cuja principal consequência é o pagamento de perdas e danos, tratados entre os artigos 402 a 404 do Código Civil.
Conforme o artigo 402 do Código Civil, as perdas e danos devidos ao credor abrangem não apenas o que ele efetivamente perdeu, mas também o lucro razoavelmente deixado de auferir. No entanto, no contexto do pacto de coparentalidade, não se vislumbra a possibilidade de falar em lucros cessantes, tendo em vista a impossibilidade de se atribuir um valor monetário à prole.
A perfectibilização do pacto ocorre com a assinatura das partes, sendo que sua principal obrigação é a geração do filho, que se inicia com a fecundação; momento em que as demais cláusulas são então estabelecidas e confirmadas.
Caso uma das partes desista anteriormente à fecundação, deverá ser condenada a indenizar materialmente todas as despesas provenientes da celebração do pacto (exames, medicação, alimentação etc.), com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Na ocasião em que um dos pactuantes quebre o pacto durante a gestação, ficará inadimplente e sujeito às consequências desse descumprimento, incluindo a obrigação de indenizar por todas as despesas relacionadas à gestação, tanto antes, durante quanto depois do parto.
É importante ressaltar que o reconhecimento da paternidade e/ou maternidade é um ato jurídico stricto sensu e não está sujeito aos efeitos do negócio jurídico celebrado entre as partes. Portanto, após a fecundação, o reconhecimento da filiação está devidamente resguardado em razão da sua natureza jurídica.
Além disso, sugere-se a pactuação de cláusula penal, que é a penalidade civil imposta pela falta de cumprimento total ou parcial de um dever patrimonial assumido (artigos 408 a 416 do Código Civil). Pactuada entre as partes para casos de violação da obrigação, a cláusula penal reflete o princípio da autonomia privada, sendo também chamada de multa contratual ou pena convencional. É uma obrigação acessória que visa assegurar o cumprimento da obrigação principal e estabelecer antecipadamente o valor das perdas e danos em caso de descumprimento.
Por fim, independentemente do reconhecimento legal, as pessoas têm realizado os pactos de coparentalidade e, em breve, o Poder Judiciário poderá ser chamado a intervir para a resolução de disputas eventualmente surgidas. O que se sugere é a aplicação da teoria do inadimplemento das obrigações, aplicando a indenização por perdas e danos, com eventual execução da cláusula penal em relação à parte que descumpriu o negócio pactuado.
Referências
BORGES, Yago. Sobre este grupo: coparetanlidade, barriga solidária, casais LGBTQIA+. Facebook. Disponível aqui. Acesso em 21 abr. 2023, n.p.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 15 mar. 2023.
BRASIL. Senado Federal. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Relatório final dos trabalhos da Comissão. Brasília, DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 16 abr. 2024.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19.
MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
PROJETO COPARENTS WORLD. 10 mar. 2024. Instagram: @coparents.world. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2024, n.p.
ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10 ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253.
STROZZI, Arthur Lustosa et al. Análise jurídica do pacto de coparentalidade à luz da teoria do negócio jurídico e das consequências de seu inadimplemento. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira (coord.). IBDFAM/RS, Instituto Brasileiro de Direito de Família (org.). Diálogos contemporâneos sobre família e sucessões: perspectivas e desafios. Porto Alegre: Gráfica RJR, 2024.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3.
VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p.
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1 ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10. ed. São Paulo. JusPodivm, 2023, p. 253.
2 Adotamos a expressão pacto de coparentalidade por entendê-lo enquanto negócio jurídico complexo, que envolve elementos existenciais e patrimoniais patrimoniais e, exatamente por essa razão, utiliza a expressão “pacto” em vez de “contrato”.
3 VIEIRA, Danilo Porfírio de Castro. O contrato de coparetanlidade e a finalidade (ir)resistível: a (des)caracterização da união estável. Associação de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, 23 mai. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 07 mai. 2023, n.p.
4 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
5 MATOS, Ana Carla Harmatiuk; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Pacto antenupcial na hermenêutica civil-constitucional. In: MENEZES, Joyceana Bezerra de; CICCO, Maria Cristina de; RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Orgs.). Direito civil na legalidade constitucional: algumas implicações. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19.
6 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1-2.
7 A redação proposta pela relatoria-geral da comissão de juristas responsável pela reforma do anteprojeto do Código Civil contempla a possibilidade de adicionar um novo artigo, o 1.655-A, ao Código Civil. Esse artigo estabelece que os pactos conjugais e convivenciais podem incluir cláusulas para resolver questões relacionadas à guarda e sustento dos filhos em caso de término da convivência conjugal. O tabelião deve informar a cada uma das partes envolvidas, separadamente, sobre o alcance potencial das limitações ou renúncias de direitos. Contudo, sabe-se que há corrente que defende a necessidade de judicialização e homologação de determinadas cláusulas, em especial, nos casos de inseminação caseira ou autoinseminação.
8 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 3.
9 Destacam-se as exceções, entre outras existentes, os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil (bem de família) e 833 do Código de Processo Civil.
Fonte: Migalhas
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